segunda-feira, 30 de abril de 2018

Em breve tudo será sonho e cinza

Por Pedro Fernandes





Dentre as questões fundamentais de interesse da literatura está o dilema do homem com o tempo. Nesse interior, figura a tentativa de compreender acerca da nossa degeneração – a rapidez com que tudo é tragado por uma força impossível de ser contida. Compreender aqui não significa determinar causas ou oferecer uma resposta ao maior dos enigmas da existência, mas testemunhar tais transitoriedades. Embora, a literatura se apresente como uma das muitas tentativas de eternidade, ela própria sabe-se que numa hecatombe futura, a que sempre estivemos expostos, pouco ou nada resulte de sua passagem pela Terra.

O romance único de Giuseppe Tomasi di Lampedusa se filia a esse grupo dileto de obras que tematizam a decadência, a luta do homem contra a indelével transformação das coisas com a passagem do tempo, afinal, tal força não deixa sobrar nem mesmo a mais secular das tradições. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, para recuperar uma frase de José Saramago, outro nome que construiu uma obra testemunha das modificações impostas pelo sopro de Cronos.

O leopardo está marcado em parte pelo contexto dos levantes que favoreceram ao nascimento do Reino de Itália, estado fundado da unificação dos vários territórios da península itálica – o resultado fracassado de uma série de lutas pela criação da república. Este período aí referido cobre de 1860, com a autoproclamação de Vittorio Emanuele como rei da Itália e vai até 1946, quando, enfim, veio a proclamação da república. O romance de Lampedusa inicia quando da passagem pela Sicília da coluna Garibaldi, isto é, no princípio desse movimento histórico, e finda três décadas antes da república, quando o levante garibaldino foi transformado em mais uma efeméride no calendário italiano.

À sua maneira este romance trata-se de uma saga familiar. Uma vez o escritor italiano lidar com a subversão dos protocolos da narrativa do gênero, O leopardo finda por ser uma sui generis e logo clássica, se compreendemos que a força da grande obra resulta na possibilidade de renovação dos estatutos da narração. Uma parte da individualidade desta saga é a recusa por se manter os fatos da narrativa presos à ordem da história – o próprio interesse de não cobrir todo o período do Reinado justifica isso. Há ainda dois outros aspectos estruturais: a escolha de um narrador que se situa à distância do narrado e por vezes se imiscui entre o discurso tecendo conjeturas alheias ao período retratado; e a escolha por um tempo cujas as ausências somam mais que as presenças.

Dom Fabrizio figura como a personagem principal última herdeira do grande feudo de Donnafugata e do Reino da Duas Sicílias. Situada a narrativa à distância dos conflitos pela unificação e mesmo da grande celeuma que representou tais transformações, Lampedusa constrói um afresco cujas cores atravessam um estágio de esmaecimento e perda de sentido e de como os novos regimes se constituíram a partir de determinadas conveniências capazes de sepultar qualquer ideal revolucionário fomentador de consciências pelas mudanças.

Embora à distância do ponto fulcral da revolução, a narrativa nos oferece não um panorama do alto sobre a história, mas o seu interior, construindo outra versão para os de que fora apenas apreciam como uma reviravolta do estado de coisas. É como se o romancista atestasse que antes do favorecimento da força dos que lutam é a própria dinâmica do tempo a que obriga a revisão contínua do estabelecido. Eis uma visão, certamente, problemática, porque se reveste de uma condição mais ou menos cômoda de que as coisas são o que são e o tempo se encarrega de ajustá-las. Entretanto, é uma mirada decadentista nascida sempre de todo momento da história assinalado pela presença de um espírito idealista, que depois resulta ilusório, segundo o qual alcançaremos o modelo essencial de comunidade. Lampedusa é testemunha de uma revolução cujos propósitos foram amainados e tornado outra coisa totalmente diferente pelo que se lutava ou a permanência do mesmo com nomenclatura e figuras diversas das dominantes.

Dom Fabrizio figura como aquele que de longe observa, tomado em parte de uma profunda melancolia, em parte de uma nostalgia, a ruína de toda uma tradição e o aparecimento de outro tempo singularmente marcado por um esgarçamento cultural que na sua continuidade desaguará no seu quase total esvaziamento. Diferentemente dos incapazes de renunciar parte de sua condição e por isso perecerem, o príncipe sabe que vive numa iminência e a ele se não resta abdicar de seus valores, porque seu tempo de vida já não o permite ao mesmo ímpeto do jovem, pode apreciar a possibilidade de fazê-los integrar à panaceia de outros em nascimento. Ou seja, reconhece-se o fluxo das transformações embora prefira não se ater a elas porque não se vê de nenhuma maneira como sua presença poderia significar algo num processo que julga ter a força dos mais jovens – ou de jovens como o sobrinho de estima, Tancredi, que vai à guerra em torno dos ideais garibaldinos e se propõe ser a casa Salina na nova nação que daí surgir.

Há uma ocasião do romance em que isso se mostra bastante visível que é quando um emissário do governo visita Donnafugata para propor ao príncipe o cargo de senador. Dom Fabrizio então se derrama numa longa explicação sobre o porquê declina o convite. No seu discurso constrói uma explicação sentimental e desencantada sobre como as tais transformações alardeadas não significariam nada para a gente daquele reduto da Sicília. Premonitória ou não, a exposição carrega algumas verdades que agora diríamos universais: se proponha o que se propor a exploração de uns sobre outros não deixará de existir. Esse fatalismo aparece corroborado noutra passagem do romance, a em que o padre Pirrone, confessor e amigo da casa principal, tece ao herbalário todo um discurso barroco em nome da manutenção da ordem como querença divina. Claro que, embora comunicantes, há uma ampla diferença entre uma posição e outra: um reconhece-se incapaz de servir às transformações propostas porque se vê como membro de uma casta em decomposição e o outro prefere a mesma ordem porque a ele convém os interesses particulares da instituição a qual pertence, que nessa ocasião estavam ameaçados. Também não faremos aqui uma defesa apaixonada a Fabrizio que mesmo impotente vê no sobrinho, ainda que em falso, a alternativa de perduração da casa principal.

Agora, no que se refere ao movimento quase natural da história, é preciso sublinhar que o envolvimento amoroso de Tancredi com a filha de Dom Calogero, membro da ascendente burguesia, amarra perfeitamente os interesses de perpetuação pressupostos por Dom Fabrizio no mesmo instante que com a compreensão de que a revolução e guerra não estão à serviço das transformações dispostas por certa natureza idealista ou utópica. Embora a união estabelecida entre a casa Salina e os Sedara funcione como uma espécie de metonímia sobre o que significou a unificação da península itálica – o que restava do feudalismo e do reinado precisa unir-se à nova riqueza até para garantir aos da nova classe o que nela se ausentava, a tradição e a posição social – o casamento de um meio-real com uma burguesa, dispõe uma assertiva que até hoje, dentro e fora da Itália, funciona como leitura sobre o lugar do poder de domínio: briguem o quanto brigar, quando os interesses de um outro estiverem à beira de um colapso haverá sempre a saída de apagamento das divergências para continuidade dos seus status. A ruína virá por outra ordem: aquela que despreza que os valores são limitados e que da própria ordem pode surgir a desordem e não da interferência alheia. Entre povo e governo as distâncias fazem-nos mais incomunicáveis do que supõe o primeiro grupo.



Quando dissemos que Giuseppe Tomasi di Lampedusa constrói um afresco de uma parte importante na saga da família dos Salina, pensávamos ainda na maneira como O leopardo ganha forma. São oito momentos marcados pela descontinuidade temporal que poderíamos vê-los, como parece ver o próprio narrador pela posição contemplativa que assume, como oito telas que formam a totalidade da pintura: de maio de 1860 a maio de 1910 – sendo que do século anterior preservam-se alguns meses de entre 1860 a 1863, para um salto a 1883 e ao mês que encerra o romance.

Quer dizer, cobre-se um século de história com as passagens mais importantes na vida dos Salina, uma alternativa que ganha justificativa fora da narrativa se pensarmos que a mais longa das existências sempre será marcada por poucos e pequenos episódios realmente de relevância ou que significaram outra condição no curso da vida.  (Isso, aliás é o que parece perscrutar no alto da idade avançada – e já no fim do romance – a personagem Concetta ao reencontrar com alguns episódios do passado que vistos a essa altura são tratados enquanto possibilidade para outro rumo de sua existência, possivelmente mais interessante que a monotonia da solidão no grande palácio da família onde tudo segue carcomido pela poeira e pelo mergulho na decadência e na morte).

É um universo de formas fixas, como quer seu protagonista – se pudermos falar que Dom Fabrizio reúne esse papel –, que a contemplação do leitor ao lado do narrador, quem o dirige, atribui às cenas dessa tapeçaria o movimento e o brilho vital à narrativa. E a fixidez desse universo ainda dialoga com a própria compreensão central do romance que traçar um perfil da Sicília e dos sicilianos recobra o estado de paralisia, onírico, como definidor da nação e logo da sua identidade.

Por isso, então, é que O leopardo, distante contextualmente e temporalmente de culturas como a nossa se mostra atual em pelo menos duas frentes: uma formal e estrutural porque apesar do tom pasteurizado de um romance clássico se apresenta alimentado pelos trejeitos do que agora se designa como pós-moderno; e outra argumentativa, por se propor ser uma terceira via no debate das transformações do poder de domínio. Desprezando o tom fatalista recorrente ficamos sabedores de que nenhuma revolução significará o que o nome diz se não desencadear a total subversão de pontos de vista e de condições. Fora isso, estaremos condenados à permanência e à espera. O tempo é indelével, mas suas forças são extremamente lentas se considerarmos que nossas existências são apenas pequenos grãos na sua engrenagem. Assim, é possível que nada mude se só adotemos o cômodo olhar contemplativo. Ou, se mudar, seja apenas os nomes e as formas – enquanto a ordem continua a mesma. Isto é, se o que queria Lampedusa era provar a permanência da ordem dominante, findou por nos oferecer uma lúcida compreensão de que a tal permanência depende exclusivamente da ausência de força dos que omitem à luta.

***

(fragmento da obra)

Assim que se sentou Chevalley expôs a missão para a qual fora designado: “Depois da feliz anexação, ou melhor, depois da alvissareira união da Sicília ao Reino da Sardenha, o governo de Turim tem a intenção de nomear para o Senado do Reino alguns sicilianos ilustres; as autoridades do governo da província foram encarregadas de redigir uma lista de personalidades a serem submetidas ao exame do governo central e, se for o caso, à nomeação pelo Rei e, como é óbvio, em Agrigento pensou-se imediatamente no seu nome, Príncipe: um nome ilustre por antiguidade, pelo prestígio pessoal de quem o traz, pelos méritos científicos e, também, pela atitude digna e liberal assumida durante os recentes acontecimentos”. O breve discurso tinha sido preparado havia tempos, aliás, fora objeto de concisas anotações a lápis num caderninho que agora descansava no bolso posterior da calça de Chevalley. Mas Dom Fabrizio não dava sinal de vida, as pálpebras pesadas mal deixavam entrever seu olhar. Imóvel, a patorra de pelos alourados recobria inteiramente uma cúpula de San Pietro em alabastro que estava sobre a mesa.

Já acostumado à astúcia dos loquazes sicilianos quando indagados sobre qualquer coisa, Chevalley não se deixou perturbar: “Antes de enviar a lista a Turim, meus superiores acharam por bem informá-lo sobre a questão e lhe perguntar se tal proposta seria do seu agrado. Solicitar seu consentimento, algo que é muito esperado pelas autoridades, foi o objeto da minha missão aqui, missão que aliás me valeu a honra e o prazer de conhecer o senhor e os seus, este magnífico palácio e esta Donnafugata tão pitoresca”.

[...]

“Escute Chevalley: se se tratasse de uma distinção honorífica, de um simples título a ser impresso no cartão de visitas e só, eu teria o maior prazer em aceitar; penso que, neste momento decisivo para o futuro do Estado italiano, é dever de cada um manifestar seu apoio, evitar a impressão de desacordo perante os Estados estrangeiros que nos observam com um temor e uma esperança que se revelarão injustificados, mas que por ora existem”.

“Mas então, Príncipe, por que não aceitar?”

“Calma, Chevalley, já vou explicar: nós, sicilianos, fomos acostumados, devido a uma longa hegemonia de governantes que não eram da nossa religião, que não falavam nossa língua, a ter de nos virar. Se não fizéssemos isso, não escaparíamos dos coletores bizantinos, dos emires berberes, dos vice-reis espanhóis. Burro velho não perde a mania, somos feitos assim. Eu disse ‘apoio’, não ‘participação’. Nesses últimos seis meses, desde que Garibaldi pôs os pés em Marsala, muitas coisas se fizeram sem sermos consultados, e agora não se pode pedir a um membro da velha classe dirigente que as desenvolva e leve a cabo; não quero discutir se o que se fez foi bom ou ruim; na minha opinião, acredito que muita coisa foi ruim; mas já posso lhe antecipar o que o senhor compreenderá sozinho quando tiver passado um ano entre nós. Na Sicília, não importa fazer o mal ou o bem: o pecado que nós, sicilianos, nunca perdoamos é simplesmente o de ‘fazer’. Somos antigos, Chevalley, muito, muito antigos. Faz pelo menos vinte e cinco séculos que carregamos nos ombros o peso de magníficas civilizações heterogêneas, todas vindas de fora já completas e aperfeiçoadas, nenhuma germinada de nós mesmos, nenhuma à qual tenhamos dado afinação; somos brancos assim como o senhor, Chevalley, e tanto quanto a rainha da Inglaterra; no entanto, há dois mil e quinhentos anos somos colônia. Não digo isso parra lamentar: em grande parte é culpa nossa, mas mesmo assim estamos exaustos e esgotados”.

Chevalley estava perturbado. “De todo modo, agora isso terminou; hoje a Sicília não é mais terra de conquista, mas parte livre de um Estado livre”.

“A intenção é boa, Chevalley, mas tardia; de resto, já lhe disse que o grosso da culpa é nosso; o senhor me falava há pouco de uma jovem Sicília que se abre às maravilhas do mundo moderno; a meu ver, parece-me bem mais uma velha centenária arrastada numa cadeira de rodas à Exposição Universal de Londres que não compreende nada, não se importa com nada, nem com as aciarias de Sheffield nem com as tecelagens de Manchester, e que só anseia voltar a cochilar entre seus travesseiros babados e o urinol debaixo da cama”.

Ainda falava em tom baixo, mas a mão em torno do San Pietro já se contraía; no dia seguinte, constatou-se que a pequena cruz acima da cúpula estava quebrada. “O sono, caro Chevalley,o que os sicilianos querem é o sono, e eles sempre odiarão quem os quiser despertar, ainda que seja para lhes dar belos presentes; e, cá entre nós, tenho minhas dúvidas de que o novo reino traga muitos presentes para nós na bagagem. Todas as manifestações sicilianas são oníricas, até as mais violentas: nossa sensualidade é desejo de esquecimento, nos tiroteios e facadas, desejo de morte; desejo de imobilidade voluptuosa, isto é, ainda de morte, nossa preguiça, nossos sorvetes de salsifinegro ou de canela; nosso ar meditativo é o do vazio que quer perscrutar os enigmas do nirvana. Disso deriva a prepotência de certas pessoas entre nós, dos que estão semiacordados; daí o famoso atraso de um século das manifestações artísticas e intelectuais sicilianas; as novidades só nos atraem quando sentimos que estão mortas, incapazes de dar lugar a correntes vitais; daí o inacreditável fenômeno da formação atual, contemporânea a nós, de mitos que seriam veneráveis se fosse antigos de verdade, mas que não passam de tentativas sinistras de mergulhar de novo num passado que nos atrai justamente porque está morto”.


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