segunda-feira, 26 de março de 2018

Memória, amor e literatura


Por Pedro Fernandes



Há escritores que dedicaram toda uma vida na escrita de um  livro. Alguns, com esse desejo universal conseguiram a proeza de escrever mais de um que se destaca no âmbito de seu projeto literário. Estes são pouquíssimos. E entre estes não se encontra Vladimir Nabokov. A afirmação poderá parecer arriscada para um leitor estagiário na sua obra, mas não é vazia ou produto de uma suposição profética. Ela se apoia na leitura de vários textos sobre outros livros do escritor russo-estadunidense e estes, por sua vez, sublinham reiteradamente o mote a partir do qual mais ou menos se constrói suas narrativas: um escritor em busca da obra ideal se debruça no seu projeto, escreve, alcança o feito, e o feito é a própria obra que o leitor tem em mãos com a assinatura de Vladimir Nabokov. 

É possível que este procedimento varie, obviamente; mas, em linhas gerais a linha de composição se estabelece: o escritor encerrado em seu labirinto de obsessões trabalha as matérias que tem ao seu alcance, grande parte delas coletada de outras leituras, até ao limite de torná-las impessoal e, portanto, próprias à criação literária. Nabokov apoiou toda sua trajetória pelo critério de negação da experiência do vivido, como pareceu ser uma recorrência na literatura de seu tempo, e entusiasmado com as possibilidades de feições diversas que uma mesma imagem pode adquirir num labirinto de espelhos ou mesmo pela variação de perspectivas de olhar. Essa negação da experiência do vivido se dá ainda pela tarefa da escrita contínua que emprega para a lapidação outros materiais de leitura; consiste em repetir o experienciado até o limite da desfiguração, aquele em que nem mesmo o próprio criador é mais capaz de reconhecê-lo ou nele se reconhecer.

O dom se inscreve nesse jogo desde quando o próprio escritor cobra do leitor que se distancie da crença no autobiográfico – que veja o material que tem em mãos apenas como criação propiciada pelos aparelhos da percepção e logo transmutada pela possibilidade fabuladora da imaginação. Obviamente que a recomendação cumpre o papel de uma navalha de dois gumes: se por um lado pode nos fazer céticos ante o que se narra, por outro, poderá aguçar nossa curiosidade natural por verificar a correlação entre o dito e o vivido. É bom dizer: a recomendação do romancista não figura como um imperativo e sim como uma estratégia-propósito de toda criação ficcional: acreditar no narrado como a verdade que é no âmbito da vida interna que se desenha na e pela narração.

Quando dizíamos que o metaliterário pode assumir, apesar do mesmo princípio, feições diversas é porque O dom, por exemplo, escapa do formato clássico segundo o qual o desfecho da obra revela ao leitor o livro que se escrevia ao longo da narração. Aqui, saímos com a possibilidade de que o livro por escrever será aquele que se designa durante toda narrativa. Trata-se de um romance que cumpre um período de gestação bastante conturbado para seu autor: entre 1932 e 1937, quando foi escrito, Nabokov vivia na Alemanha como emigrado russo; só no final dessa década pôde se mudar para os Estados Unidos onde viveu boa parte da vida. Se o que se passa ao jovem Fyodor Godunov-Cherdyntsev, a personagem principal, foi produto desse lapidar incessante que beira a desfiguração como é comum do projeto literário de Nabokov, um elemento se preserva: a experiência do emigrado é o ponto principal da narrativa de O dom.

Fyodor chega a Alemanha, depois dos ventos da Revolução Russa e do desaparecimento do pai, um entomologista de renome, e quando a mãe vai viver em Paris com a filha depois do casamento desta. O jovem tem na biografia a publicação de uma pequena antologia de poemas de corte autobiográfico e anseia pelo reconhecimento por este seu trabalho ainda que seja entre a comunidade de emigrados. A saída em massa de russos, em grande parte dissidentes ou figuras que poderiam servir de bode expiatório para o regime favoreceu o desenvolvimento de uma faixa de criadores, entre os quais se nota a presença do próprio Vladimir Nabokov, que produziu uma literatura distante dos ideais de figuração impostos pelo seu país de origem. É aqui que o autor de O dom, possivelmente, gestou sua ojeriza para com as narrativas nas quais os princípios sociais, históricos, políticos e autobiográficos se constituíssem como marcas principais da criação ficcional. Fyodor recupera essa gênese. Embora a antologia de poemas que compôs, por exemplo, dialogue estreitamente com sua própria experiência do vivido, é o efeito estético que almeja fazer prevalecer.

Na Berlim de 1900 – a década é propositalmente suprimida pelo narrador numa tentativa de desfiguração do modelo recorrente em que o dado do calendário se marcava como estratégia narrativa pela verossimilhança – acompanhamos este rapaz de ambições grandiosas para a construção de uma literatura capaz de figurar entre os principais criadores de então, incluindo nomes consagrados como Dostoiévski, Turguêniev ou Tolstói, figuras que a rebeldia não deixa de passá-los à navalha pela acusação de integrados a um modelo produto de um status quo e de uma condição outorgada por uma crítica não menos conveniente com seus trabalhos. Fyodor, depois de reconhecer o fracasso para a poesia é, tomado pelo episódio de desaparição do pai, levado a escrever um romance.

O projeto da personagem principal é a dominante de O dom. Dos cinco capítulos, apenas o primeiro e o último desenvolvem situações que formam uma imagem de Fyodor, da sua relação com a mãe, o pai e a irmã, das suas mudanças pelas pensões berlinenses, do seu convívio com a comunidade de russos emigrados, do seu envolvimento amoroso com Zina Mertz. Nos demais, entramos em contato com a ânsia e o nascimento da ideia, o desenvolvimento dos planos para sua consolidação, a composição dos materiais de pesquisa e as anotações construídas em vias de estabelecer uma atmosfera do ambiente de desenvolvimento da história, a escrita e a publicação, a recepção e o renascer da preocupação que se mantém pela grande obra. Todo esse trâmite poderá parecer um exercício cansativo para o leitor, sobretudo porque marcado por uma visita minuciosa a situações e personagens muito impregnadas das condições históricas do país de natal de Fyodor; parte disso se deverá ao caso do leitor que tomar a iniciativa de acreditar diretamente na recomendação de Nabokov e ignorar totalmente que o protagonista e as personagens com as quais se relaciona se encontram afundados no material da história.

Mas, não poderá o leitor deixar de se sentir um perscrutador do exercício criativo do próprio Nabokov, ao observar o trabalho de seu protagonista na composição, a vitrina, de A vida de Chernishevski sobretudo quando se perceber cooperador criativo de Fyodor. A personagem, depois de se aventurar nas memórias sobre o seu passado, nos rastros deixados pelo pai a partir de seus livros e dos livros que o mencionam, nos depoimentos da mãe, perceberá que, ao invés de um romance sobre essa figura, deve conceber uma narrativa sobre o russo Nikolai Gravilovitch Chernishevski. Mesmo o despertar da ideia, parece denunciar Nabokov, não é produto do acaso, afinal é necessário que Fyodor tenha adquirido toda a vivência sobre a vida do pai para depois do contato com um texto de Nikolai se aventurar numa narrativa sobre um nome que manifestamente é, entre os russos, o mais sagrado.  

As possibilidades ao acaso de que o pai de Fyodor tenha sido mais uma das vítimas da revolução, qual foi o protagonista de seu livro é o elemento motivador ao desenvolvimento da espiral imaginativa capaz de subverter a morte de Chernishevski. Isto é, a composição dessa personagem revelada no capítulo quatro de O dom, é produto das elucubrações que desenvolve em torno da própria figura do pai. Isso fica visível quando Fyodor fabula outras alternativas para o fim de um homem que se tornaria para os russos um mito; a morte não acontecida na ficção o leva a fabular sobre outros fins possíveis para seu protagonista o que sublinha a dimensão mítica qual um sebastianismo, para recuperar um dos mitos próximos à nossa cultura, ou mesmo de um Antonio Conselheiro. Chernishevski escreveu na prisão o romance O que fazer? – um título que marcou todo o imaginário russo do século XIX e desempenhou motivações criativas a toda uma extensa geração de escritores e constitui ao lado de O capital, de Marx, uma compreensão acerca da dinâmica emocional que favoreceu ao levante da Revolução Russa.

Quando vai viver em Berlim, Fyodor trava contato com um dos filhos de Chernishevski, Alexander; a narrativa recupera o fim trágico do romântico Yacha e a derrocada depois de sua morte do que seria a família mais promissora do famoso revolucionário. A chegada de Fyodor à família Chernishevski representa uma alternativa dos pais de enfrentamento da dor da perda; o protagonista nabokoviano guarda, aos olhos deles, estreitas semelhanças com o filho morto. Já aqui nasce o contato de Fyodor com o imaginário sobre o qual trabalharia mais tarde: a Sra. Chernishevski o estimula a escrever sobre Yacha e o nosso protagonista logo descobre um intricado triângulo amoroso que teria levado a desgraça à família: Yasha guardava uma paixão platônica pelo amigo Rudolf, este, por sua vez, guarda uma paixão de mesma proporção por Olya e esta por Yasha, perfazendo um círculo que favorecerá, depois de em parte revelados os sentimentos, a um suicídio coletivo no qual apenas o primeiro entrega-se à eternidade. A história oculta, o drama psicológico das personagens daria motivo para o melhor dos romances de corte romântico pelos quais o jovem Fyodor não dispõe de qualquer interesse. Por vias tortas, a história do avô de Yasha alcança a dimensão do que procura: não a do romance histórico mas a do romance de subversão da história.



Se A vida de Chernishevski revela o talento de Fyodor entre seus pares, os mesmos que calaram sobre os livro de poemas que inaugura sua obra – e mal sabe esses pares que a obra publicada por sua conta é fruto das elucubrações em torno de um soneto – é a obra que desperta no jovem escritor a possibilidade de escrita do livro por vir. E é este o livro que temos em mãos – O dom. O que Nabokov constrói, portanto, não um romance diante do espelho, é um puzzle, a obra em seu gérmen. Este título reveste-se, assim, de uma complexa carga de ironia: ora é mesmo o dom da escrita o que trata a narrativa ora é a negação da ideia de dom enquanto inspiração atribuída ao escritor por ordem do acaso. Também o dom é, qual a obra, uma criação forjada pelos mesmos recursos que forjam a escrita.

Curiosamente não é Fyodor quem incorpora o estilo de Chernishevski à composição de sua narrativa, mas Nabokov quem se deixa contaminar pelas descrições detalhadas. A característica estilística do escritor-motivo do texto do protagonista de O dom é revelada pela narrativa de Fyodor. Isto é, o fato de O dom não ser um romance posto ao espelho não é motivo para compreender que as engrenagens que suspendem não sejam produtos desse processo e, logo, impossível de negar pelas imagens sugeridas a partir da obra composta por Fyodor que não seja a imagem do próprio Nabokov a que se revela.

Este foi o último livro que o autor de Lolita escreveu em russo e nele se perscruta uma revisão de uma literatura que do contexto referido por O dom só ganharia maior consideração mundo afora. Reiteradas vezes se disse que aí está um acurado panorama do universo literário russo. Mas esse painel não é dado pela retomada apaixonada dos grandes nomes, e sim pelo que de frágil se esconde neles. Uma alternativa do próprio Nabokov em se imiscuir entre eles, qual almeja Fyodor, a fim de ser um entre eles ou mesmo um maior que eles? Não é de ego que esse romance fala: é a de reconstrução de um lugar que nele se permita a incisão do novo. Ao descortinar todos os bastidores da literatura, as relações pessoais e intelectuais o que nos é revelado é que, tal como escrita e a inspiração, também se fabricam os tais lugares no panteão, estes são produções ideologicamente motivadas.

Por fim, para alinhavar uma das pontas soltas no texto, afirmar qual seria o livro ideal que definiria a obra de Nabokov e o coloca entre os desse panteão, só mesmo depois de uma leitura de grande parte de seus títulos – não poucos, aliás. Não é O dom, entretanto. É possível que no fim, se chegarmos, saberemos que é toda a obra, essa que se configura um só corpo como é da natureza criativa dele.  

***
(fragmento da obra)

Ele ouviu o corredor se encher de vozes se despedindo, ouviu cair o guarda-chuva de alguém e o elevador chamado por Zina roncar e parar. Ficou tudo calmo de novo. Fyodor foi à sala onde Shchyogolev quebrava as últimas nozes, mastigando de um lado, e Marianna Nikolavna tirava a mesa. Seu rosto gordo, rosa escuro, as abas brilhantes do nariz, as sobrancelhas violeta, o cabelo cor de abricó virando um tom azulado na nuca gorda raspada, o olho azul com o rímel borrado no canto, mergulhando momentaneamente o olhar nos detritos da infusão no fundo da chaleira, seus anéis, o broche de granadina, o xale florido sobre os ombros – tudo isso junto constituía um retrato borrado, cruel, mas rico de algum estilo vulgar. Ela colocava os óculos e pegava uma folha com números anotados quando Fyodor perguntou quanto devia a ela. Diante disso, Shchogolev ergueu as sobrancelhas, surpreso: tinha certeza de que não receberia nem um centavo de seu inquilino, e, sendo essencialmente um homem bom, havia aconselhado a esposa ainda ondem a não pressionar Fyodor, mas sim escrever a ele de Copenhague uma ou duas semanas depois, ameaçando entrar em contato com seus parentes. Depois de acertar, Fyodor guardou três marcos e meio dos duzentos e foi para a cama. No corredor, encontrou Zina voltando de baixo. “E então?”, ela perguntou, com o dedo no interruptor, uma interjeição meio interrogativa, meio de insistência, que queria dizer aproximadamente: “Está vindo para cá? Vou apagar a luz aqui, então venha depressa”. A pinta em seu braço nu, as pernas vestidas com seda clara, chinelos de veludo, rosto baixo. Escuro.

Ele foi para a cama e começou a adormecer com o sussurro da chuva. Como sempre no limiar entre a consciência e o sono, todo tipo de dejetos verbais, cintilantes, tilintantes, irromperam: “O cristal crepitante da noite cristã sob a estrela crisolítica”... e seu pensamento, ouvindo por um momento, aspirou a reuni-los, usá-los, e começou a acrescentar por si mesmo: extinta, de Yasnaya Polyana a luz, e Púchkin morto e a Rússia longe... mas como isso não era bom, a escalada de rimas se estendeu: “Uma estrela cadente, um crisólito cruzador, um avatar de aviador...” Sua mente mergulhou mais e mais fundo em um inferno de aliterações aligátores, em infernais cooperativas de palavras. através de seu acúmulo sem sentido, um botão redondo na fronha cutucou sua face; virou-se para o outro lado e, contra um fundo escuro, pessoas nuas corriam para dentro do lago Grunewald, e um monograma de luz parecendo um infusório deslizou diagonalmente do canto mais alto de seu campo de visão subpalpebral. Por trás de certa porta fechada em seu cérebro, segurando a maçaneta, mas voltada para longe dela, sua mente começou a discutir com alguém um segredo complicado e importante, mas, quando a porta se abriu por um minuto, viu-se que estavam falando sobre cadeiras, mesas, estábulos. De repente, na névoa que se adensava, no último pedágio da razão, veio a vibração prateada de um toque de telefone, e Fyodor rolou de bruços, caindo... A vibração ficou em seus dedos, como se uma urtiga o tivesse furado. No corredor, tendo já devolvido o receptor a sua caixa preta, estava Zina – ela parecia assustada. “Era para você”, ela disse em voz baixa. “Sua antiga senhoria, frau Stoboy. Ela quer que você vá até lá imediatamente. Tem alguém esperando você na casa dela. Depressa.” Ele enfiou uma calça de flanela e, ofegante, seguiu pela rua. Nessa época do ano, Berlim era algo semelhante às noites brancas de São Petersburgo; o ar era cinza transparente, as casas passavam nadando como uma miragem de sabão. Alguns trabalhadores noturnos haviam quebrado o pavimento na esquina, e era preciso se esgueirar pelas estreitas passagens entre as placas, todos recebendo na entrada uma pequena lâmpada que deveria ser deixada na saída em um gancho parafusado a um poste, ou simplesmente na calçada ao lado de algumas garrafas de leite vazias. Deixando sua garrafa também, ele correu mais adiante pelas ruas opacas, e a premonição de algo incrível, de alguma surpresa sobre-humana impossível, salpicou seu coração com uma mistura nevada de felicidade e horror. Na neblina cinzenta, crianças cegas usando óculos escuros saíram aos pares de um prédio escolar e passaram por ele; elas estudavam à noite (em escolas economicamente escuras que, durante o dia, abrigavam crianças que enxergavam) e o clérigo que as acompanhava parecia o professor da aldeia de Leshino, Bychkov. Encostado a um poste de luz, a cabeça tosada pendente, as pernas em tesoura com calças listradas bem abertas e as mãos enfiadas nos bolsos, estava um bêbado magro como se saído diretamente das páginas de uma velha sátira russa. Ainda havia luz na livraria russa – estavam servindo livros aos motoristas de táxi noturnos, e através da opacidade amarela do vidro ele notou a silhueta de Misha Berezovski, que entregava o atlas preto de Petrie a alguém. Deve ser duro trabalhar à noite! A excitação o tomou de novo assim que chegou a seus antigos arredores. Estava sem fôlego por causa da corrida, e o cobertor enrolado pesava em seu braço – tinha de correr, mas não lembrava o desenho das ruas e a noite cinzenta confundia tudo, mudando como numa imagem negativa a relação entre as partes claras e escuras, e não havia a quem perguntar, todo mundo estava dormindo. De repente apareceu um álamo, e atrás dele, uma alta igreja com janela vermelho-arroxeada dividida em losangos arlequinais de luz colorida: dentro, o serviço noturno estava em curso, e uma velha de luto com algodão sob a ponte dos óculos subia depressa os degraus. Ele encontrou sua rua, mas no fim dela um poste com uma mão enluvada indicava que naquela ponta uma pilha de bandeiras havia sido preparada para o festival de amanhã. Estava com medo de perde-la em um desvio a além disso o correio – que viria depois – se mamãe não tivesse recebido um telegrama. Ele passou com dificuldade por tábuas, caixas e um granadeiro de brinquedo encaracolado e avistou a casa conhecida, onde os trabalhadores já haviam estendido na calçada uma faixa de tapete vermelho da porta até a sarjeta, como costumava ser feito na frente de sua casa no Aterro Neva em noites de baile. Ela estava com as faces brilhantes e usava um jaleco branco hospitalar – havia praticado medicina antigamente. “Só não fique todo agitado”, ela disse. “Vá até seu quarto e espere lá. Tem de estar preparado para tudo”, acrescentou com uma nota vibrante na voz e o empurrou para dentro do quarto no qual achara que nunca mais ia entrar. Ele a agarrou pelo cotovelo, perdendo o controle, mas ela se soltou com um movimento brusco. “Alguém veio ver você”, disse Stoboy, “ele está descansando... Espere uns minutos”. – A porta bateu com ruído. O quarto estava exatamente como se ele ainda morasse ali: os mesmos cisnes e lírios no papel de parede, o mesmo teto pintado maravilhosamente ornamentado com borboletas tibetanas (ali estava, por exemplo, a Thecla bieti). Expectativa, assombro, o frio da felicidade, o surto de soluços fundiam-se numa única agitação ofuscante enquanto ele esperava ali no meio do quarto, incapaz de se mexer, ouvindo e olhando para a porta. Ele sabia quem iria entrar dentro de um momento, e ficou perplexo então que tivesse duvidado do seu retorno: duvidar agora lhe parecia a obtusa obstinação de um tolo a desconfiança do bárbaro, a autossatisfação do ignorante. Seu coração estava explodindo como o de um homem antes da execução, mas ao mesmo tempo essa execução era tamanha alegria que a vida se apagava diante dela, e ele não conseguia entender a aversão que experimentara quando, em sonhos construídos às pressas, havia evocado o que estava agora acontecendo na vida real.

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