segunda-feira, 23 de outubro de 2017

E contra o quê luta Karl Ove Knausgård?

Por Pedro Fernandes



Desde A morte do pai, o primeiro volume de Minha luta, um extenso romance no qual Karl Ove Knausgård esboça passar a limpo sua vida, que já era possível de suspeitar a que se refere este simbólico título que encontra ecos em tradições não tão celebrativa no universo dos livros – ao dizer isto, pensamos no mesmo título escolhido por Adolf Hitler para sua imoral autobiografia. E contra o quê luta o escritor norueguês? A resposta para a pergunta já está pronta e, a essa altura, quando da leitura do quinto volume de um total de seis que formam sua obra-prima, é possível apresentá-la sem receio do erro ou da contradição.

Em A descoberta da escrita Karl Ove Knausgård trata de explorar os lugares, as situações e a insistente tentativa de escrever. Mais que isto: de construir o que poderíamos chamar de ethos do escritor. Por toda a parte está em contato com figuras, grande parte delas são pessoas mais jovens que ele, entregues ao ofício de manipulação da palavra, sérias e dedicadas à escrita ao ponto de obterem os elogios esperados por todo aquele que cria e o lugar entre os importantes círculos literários na Noruega, enquanto a si tudo são faltas se alguma ou outra porta que se abre é motivo de esperança as que se fecham, sempre em número maior, colocam tudo no território da impossibilidade. Não guarda nenhuma credibilidade por seu interesse recorrente, vive metido numa mortal insegurança que sempre o desenha um incapaz, uma farsa, um sujeito sem jeito para o meio. E tudo parece avivar-se ainda mais porque é reforçado não apenas pelas suas atitudes, mas por aqueles que metidos no exercício literário também não lhe deitam grande credibilidade.

É depois de retornar de um longo périplo por meia Europa, viagem que empreende primeiro na companhia de um amigo, depois sozinho, quando os recursos rareiam, e antes de iniciar as aulas num curso de escrita criativa em Bergen que reencontramos o narrador. E ao longo de A descoberta da escrita atravessamos com ele, os momentos nas aulas com importantes figuras da literatura contemporânea em seu país, a conturbada relação entre ele e a escrita, entre ele e os escritores colegas de curso, ele e o irmão, entre ele e a errância pelos amores, entre ele e o pai, o primeiro casamento, as passagens pelos cursos de Letras e Artes, as relações familiares e as perdas dos entes queridos, incluindo o retorno ao episódio que impulsiona o Minha luta, isto é, a morte do pai, e as várias tentativas, sobretudo, as frustrações em não conseguir construir sua obra de estreia, enquanto se debate entre histórias fracassadas e a leitura incansável de importantes escritores da literatura mundial, de Jorge Luis Borges a Julio Cortázar, dos clássicos da cena modernista aos seus contemporâneos, de Dostoiévski a James Joyce, de Marcel Proust aos franceses do nouveau roman.

O périplo geográfico é substituído, sem que este deixe de existir, pelo universo feito de imaginação, engenho e laboração da linguagem. E não restará no leitor, depois de acompanhar esse narrador ora sério e debochado, ora interessado no mínimo detalhe, ora visitando situações en passant, nenhuma dúvida sobre a ilusão da inspiração como elemento do qual uns são dotados e por isso se dedicam à criação literária. O gênio é apenas uma inclinação e a inspiração, se é ainda para continuar a acreditar na sua existência, é apenas o alvorecer da ideia; o que mais resta é um contínuo e angustioso trabalho de perlaboração até torná-la, a ideia, em acontecimento literário. Embora pareça existir no interior do criador uma obsessão que o impede de se reconhecer capaz de realizar outra coisa que não a escrita, perdura, sem dúvidas, o contínuo tatear e encontro com a inspiração é apenas o princípio e não a criação, esta que se constitui integralmente de um reiterado esforço de manipulação e lapidação.

Depois desse longo itinerário, em grande parte angustioso, não encontramos com um escritor, mesmo depois de realização de seu feito, situação previsível porque o leitor tem em mãos parte do fruto do que alcança Knausgård, seguro e agora satisfeito. Parece reincidir, como a chama que se oculta num borralho, os mesmos dilemas toda vez depois do suspeito descanso favorecido com o alcance do objeto artístico. Não será vão recuperar a imagem da possessão como a ideal para traduzir os lugares do processo criativo. Ou mesmo, a do desejo erótico – este último repetido em várias ocasiões ao longo da narrativa de A descoberta da escrita. Uma vez encarnada no indivíduo o prende numa montanha-russa de sensações que apenas alcança um estado de repouso quando a obra é concluída. Mas, logo tudo voltará a se manifestar com as mesmas inquietações e forças de antes. O escritor é uma espécie de corpo suscetível a esses súcubos que o perseguem em toda parte; embora não seja na figura do atormentado que Knausgård se perceba, como é o caso do tio poeta, ela está presente nele próprio e em toda parte da narrativa.

A descoberta da escrita acompanha uma série de transformações: a da imagem superficial do ser escritor, como se percebe e como percebe os colegas de curso na Skrivekunstakademiet, a escola de escrita criativa, e mesmo no curso de Letras, a da imagem interior, esta que nunca será a mesma depois de um longo processo de dedicação à escrita de uma obra. Isto é, a transição entre o escrevente ao escritor. Nesse processo, Knausgård embora não se convença de seu papel entre o homem que é antes do primeiro livro e o que é a partir de então, consegue transmitir ao leitor – se propositalmente ou não, não é mérito nosso investigar – a ideia de que nunca esteve meramente interessado na descoberta de uma fórmula da escrita capaz de inseri-lo num panteão dos milionários. Seu esforço ultrapassa o lugar não menos difícil daqueles interessados apenas na criação de um molde através do qual possa enformar toda a obra até seu desgaste e a criação de um novo molde feito de pequenas variações do primeiro. Há um registro sincero na sua atitude para com a literatura, compreendendo por isso a insatisfação para com os diversos projetos de escrita aos quais se dedica e a perseguição da criação de uma obra capaz de colocá-lo entre aqueles já sublinhados pela crítica e por ele próprio como fundamentais ao universo da criação.

Ao idealismo romântico da inspiração prevalece a constatação de que escrever é superar as contínuas frustrações impostas ao escritor, principalmente aquelas que o assombram e não aquelas favorecidas pela crítica ou pela leitura muitas vezes pejorativa de seus pares. A presença na escola de escrita criativa, e mesmo entre alguns círculos literários, favorece ao narrador a compreensão de nesse território há elevados jogos de ego, muito de achismo e pouco de profissionalismo para com a criação literária. Contra isso, o único remédio que sobra ao aspirante a escritor, é a perspicácia de participar paralelamente deste circuito à distância e a desenvoltura para perseguir sua formação sozinho na leitura contínua dos que estão na cota de sua admiração.



Em A descoberta da escrita não se destaca apenas estas saídas alcançadas pelo narrador. O leitor entra em contato com a gênese desse estilo que ele próprio denomina como macromalismo. O que define, em parte, o estilo de um artista, é a maneira como percebe o mundo, isto é, a maneira individual como olha para as mesmas coisas que todos olham. Outra parte, é conseguir realizar essa mirada através do instrumento de representação que tem em mãos; no caso do escritor, a linguagem. E é quando Knausgård vai viver num estúdio na zona histórica de Bergen, depois de sair da casa do irmão, que essa mirada se constrói: trata-se de um olhar nascido da apavorante insegurança que o persegue desde a infância quando era subjugado pelo pai; um olhar que parte de baixo para cima e se irradia pela visão lateral. Este olhar é alcançado no estúdio onde mora em Bergen, porque a propriedade localizada próxima ao rés-do-chão lhe favorece perceber a realidade externa a partir de baixo.

E a maneira encontrada pelo escritor em transformar isso em linguagem encontra-se na fluência com que transita entre a variedade de lugares e situações observadas. Em algum momento, a crítica o descreve como um retorno à matriz realista, o que não é verdade, uma vez que sua tentativa é a de romper com a fronteira forjada entre o interior e o exterior, algo que não se verifica na chamada obra realista. A ruptura insinuada por Knausgård é perfeitamente visível desde o primeiro volume de Minha luta: aí, a morte do pai se constitui em elemento de degeneração palpável das condições físicas aos sentimentos em torno da perda. E esta imagem é importante não apenas para o desenvolvimento desse grande romance, mas da obra do escritor norueguês como um todo.

No retorno que faz a este episódio em A descoberta da escrita, é assim que toca na questão, corroborando com a linha interpretativa aqui apresentada: “Então eu devia escrever textos curtos? Na falta de coisa melhor foi o que eu comecei a fazer. Escrevi um sobre o meu pai. Aliás, quase tudo que eu escrevia de certa maneira estava relacionado a ele, eu tinha um número incontável de variantes sobre dois irmãos, Klaus e Henrik, que voltavam à cidade natal para enterrá-lo, e depois começavam a limpar a terrível casa onde ele havia morrido. Mas não deu nada, eu não acreditava naquele texto”.

Se o sentimento mal explicado da relação entre pai e filho é motriz para a construção acerca da percepção de mundo engendrada pela literatura de Karl Ove Knausgård – percepção esta que nasce desse olhar de baixo e enviesado –, pode-se dizer que este é também sua luta. Neste rol acrescente-se ainda a própria escrita, que se torna igualmente meio de embate no qual o escritor busca fazer-se e através do qual compreender esse sentimento com que busca construir sua própria mirada sobre a realidade. Não apenas um itinerário para constatar a obviedade sobre a finitude e degeneração de tudo, como já alguma vez a crítica acusou esse longo exercício do escritor; trata-se da busca sobre uma constatação que diga de si e se mostre como é possível a revelação do mundo através da palavra. E isso é grandioso.

***

(fragmento da obra)

Quando as notas foram afixadas no quadro em frente ao instituto semanas mais tarde e vi que mais uma vez eu havia tirado 2.4, não me decepcionei, eu tinha esperado coisa pior, e ainda era possível aumentar a nota em até dois décimos no exame oral. Ou melhor, seria possível, caso eu tivesse feito as leituras necessárias. Mas eu não tinha lido nada e precisaria improvisar, sobretudo no caso de Kittang. Ele gostava de mim, toda vez que notava que eu não sabia uma coisa ele tentava me levar um passo à frente, mas nem mesmo ele poderia me tirar da enrascada em que me vi metido quando ele perguntou sobre o que Kittang pensava a respeito de uma determinada questão. Eu havia anotado o nome de vários artigos dele mas não tinha lido nenhum, e com ele presente na sala não havia como fugir do assunto, a pergunta exigia uma resposta clara e bem formulada, que eu no entanto não tinha.

Mas não foi tão desastroso assim. De qualquer jeito a minha intenção não era ser um acadêmico. Eu queria escrever, era a única coisa que eu queria, e eu não conseguia entender as pessoas que não queriam escrever, não conseguia entender como podiam se contentar com um trabalho comum, independente de qual fosse, professor, cameraman, burocrata, acadêmico, agricultor, apresentador de TV, jornalista, designer, publicitário, pescador, motorista de caminhão, jardineiro, enfermeiro, astrônomo. Como poderia ser o bastante? Eu compreendia que essa era a norma, a maioria das pessoas fazia um trabalho comum, certas pessoas investiam tudo que tinham nesses trabalhos, outras não, mas para mim aquilo tudo parecia desprovido de sentido. Se eu aceitasse um trabalho daqueles, minha vida pareceria desprovida de sentido, independente do quão bom eu fosse e do quão longe eu pudesse chegar. Jamais seria o bastante. Toquei no assunto umas vezes com Gunvor, e ela tinha a mesma impressão, só que ao contrário: ela entendia que eu me sentisse daquela forma, mas não conseguia se identificar com o sentimento.

Que sentimento era aquele?

Eu não saberia dizer. Era uma coisa que não se deixa analisar, não se deixava explicar ou justificar, não tinha nenhum traço de racionalidade, mas ao mesmo tempo tinha uma clareza tão ofuscante quanto o sol: qualquer coisa que não fosse escrever era desprovida de sentido para mim. Nada mais seria o bastante, nada mais saciaria a minha sede.

Mas sede de quê?

Como podia ser tão intensa? Escrever palavras no papel? Que ainda por cima não diziam respeito a uma tese, a uma pesquisa, a uma análise ou a qualquer tipo menor de escrita, mas à literatura?

Era loucura, pois justamente isso era o que não sabia fazer. Eu sabia escrever bons trabalhos, bons artigos, boas resenhas e boas entrevistas. Mas assim que eu me sentava para escrever literatura, a única coisa à qual eu gostaria de dedicar minha vida, a única coisa que me parecia suficientemente dotada de sentido, eu não conseguia.

Eu escrevia cartas com grande desenvoltura, frase atrás de frase, página atrás de página. Muitas vezes eram histórias do meu cotidiano, coisas que eu tinha vivido e pensado. Se eu conseguisse transmitir esse sentimento, essa atitude, esse movimento para a prosa literária, talvez desse certo. Mas eu não conseguia. Eu me sentava junto à escrivaninha, escrevia uma linha e então parava. Escrevia mais uma linha, parava.

Pensei que eu devia procurar um hipnotizador que pudesse me hipnotizar, me colocar em uma situação em que as palavras e as frases transbordassem de mim, como faziam quando eu escrevia cartas, talvez desse certo, eu já tinha ouvido falar em pessoas que tinham usado a hipnose para parar de fumar, então por que não usar a hipnose para conseguir escrever com leveza e desenvoltura?

Abri as Páginas Amarelas, não havia ninguém com a profissão de hipnotizador e eu não tive coragem de perguntar a outras pessoas, uma história como aquela se espalharia como fogo em vendaval, o irmão do Yngve quer ser hipnotizado para conseguir escrever, então no fim deixei a ideia de lado.

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