segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Quanto nossas realidades individuais se repetem infinitamente com os outros e porque elas se demonstram irrepetíveis

Por Pedro Fernandes



Ao que parece Elena Ferrante é uma das escritoras que melhor têm se dedicado aos temas do universo feminino, sobre suas adversidades e condições numa cultura machista, bem como os impasses acerca da emancipação das mulheres – situação em curso em muitas culturas e noutras, lugar de vigilância contínua, porque o império do falo ainda não foi totalmente subvertido e não são poucas as estatísticas que atestam isso.

Não é só o mundo da mulher a o que se descortina na literatura da escritora italiana. É também a construção de um olhar a partir de uma perspectiva feminina sobre o macho e as dinâmicas sociais, sobretudo nos seus diversos momentos de transformações que implicaram nas redefinições das relações entre mulheres e homens e entre as mulheres e seus corpos desde as décadas da emancipação para os dias de hoje. A infância, a adolescência e a maturidade da mulher são parte do rico e amplo painel formado pela tetralogia napolitana.

Nos quatro romances se passam as multiperspectivas sobre uma Itália marcada pelo acirramento das dicotomias: a das relações de classe, o embate patrões e empregados; a do levante e a derrocada dos modelos de poder; a transição das violências, entre o caráter explícito das rixas entre famílias às outras maneiras de competitividade, marcadas ora pela política, ora pelo capital; a da ampliação da máfia; a da abertura de certo poder aquisitivo a determinados grupos cuja evolução capital não acompanhou uma evolução cultural, produto de um modelo econômico pautado apenas no lucro e que grassa sociedades inteiras jogando-as de volta à beira da barbárie.

Nesse cenário heterodoxo, os dos romances fora das narrativas que acompanham a formação de duas mulheres e com elas as variações sociais e históricas, os dramas perdem a grandiosidade do universo coletivo. É aí que o leitor encontra Elena Ferrante dedicada mais à minúcia dos dramas individuais de mulheres no âmbito de uma sociedade que diz orgulhosa de reduzir o fosso das diferenças entre gêneros. O que, de um todo, não pode ser encarado como uma verdade irrevogável. Não deixaremos de notar o quanto a cultura falocêntrica ainda representa uma determinante social danosa aos direitos e liberdades dos indivíduos não marcados pelo traço hegemônico do macho.

Nesse ínterim, as protagonistas de Elena Ferrante assumem de si para si um papel que honra o tom de um libelo sobre essa constatação das infiltrações reincidentes do império do falo, além de se encontrarem sempre em busca de sua autoafirmação social que responda por aquilo que se demonstra melhor no plano idealizado que no plano físico – o da igualdade de direitos e da interdependência das forças na construção social e individual.

Em A filha perdida, Leda, uma professora universitária de literatura cai, feito Alice na toca do coelho, num torvelinho de situações desde quando, sozinha, depois que as duas filhas tomam a decisão de saírem de casa, tenta restabelecer certa rotina de um tempo cuja força inexorável é retomada – agora noutro contexto e por isso mesmo mais impactante. Os episódios retomados pela narrativa recortam simbolicamente esse instante de trânsito entre uma vida cujas forças haviam sido dedicadas integralmente para o sustento da família e uma vida que agora, tomada de uma “estranha sensação de bem-estar” se descortina ilusoriamente com as mesmas liberdades do tempo anterior à maternidade; agora, com um diferencial, o da total independência, isto que dá a Leda a falsa ideia de reassumir uma vida que ficara em suspenso devido as obrigações impostas pela condição de provedora do lar.

Durante o veraneio de junho Leda aluga um pequeno apartamento numa cidadezinha litorânea e munida da ansiedade provida dos retornos, parte, despretensiosamente em busca desse outro tempo. E se é verdade que toda ansiedade desemboca no insuspeito mau-acaso, seja porque depositamos no que almejamos uma expectativa excessivamente desnecessária e por isso mesmo o impacto tem suas dimensões, seja porque no movimento contínuo da vida as repetições nunca se dão com as mesmas forças de sentidos, claro, por uma razão muito óbvia, nós mesmos amanhã já não somos os mesmos de hoje.

Assim, tudo nessa estadia de Leda é marcado pelo estranhamento. A começar com o espaço novo onde habitará por um mês: “Nunca se deve chegar à noite em um lugar desconhecido: tudo é indefinido, todas as coisas dão uma impressão negativa. Deitei-me na cama com o roupão e os cabelos úmidos e fiquei olhando para o teto, esperando o momento em que ele se tornaria branco por causa da luz. Escutei o barulho distante de um motor de popa e uma música indistinta que parecia um miado. Eu não tinha silhueta. Virei-me sonolenta e rocei em algo no travesseiro que me pareceu um objeto frio, feito de papel de seda”.

Desse instante em diante tudo lhe será perturbação: a insistência (ou a percepção dela) do homem responsável pelo apartamento que alugou para com ela; a ruptura da tranquilidade e da paz de desfrutar a praia vazia sob os auspícios do belo Gino; a sensação de deslocada num lugar onde o passado se revestia doutra aura e já agora é totalmente carcomido pela frivolidade sem sentido dos sedentos por alguma experiência capaz de subverter o conteúdo repetitivo dos dias comuns; e o envolvimento que engatará despropositadamente com uma família “um pouco barulhenta de napolitanos: crianças, adultos, um homem de uns sessenta anos com expressão cruel, quatro ou cinco meninos que se enfrentavam ferozmente dentro da água e fora dela, uma mulher grande com pernas curtas e seios enormes, que tinha menos de quarenta anos, talvez, e se deslocava com frequência da praia ao bar e vice-versa, arrastando com dificuldade uma barriga de grávida, o arco grande e nu alongado entre as duas peças do traje de banho”.

Embora, Ferrante não deixe de acentuar as diferenças entre os agrupamentos sociais ao colocar tudo e todos sob o olhar atento, perscrutador e imaginativo de uma personagem que lida diretamente com as diversas variantes humanas através da ficção e da arte literária, é numa situação específica, que servirá de aproximação e afastamento entre universos aparentemente tão distintos – o de Leda e o dessa família de napolitanos, especificamente sob a “mulher extremamente jovem e a menina”, Nina. Está, assim, composta a situação propícia para que esta professora se engalfinhe de vez com sua memória sobre o passado que se impõe enquanto continuidade na existência alheia: Leda percebe-se na jovem mãe, enquanto esta se mostra encantada com a liberdade de Leda e vê nela a janela pela qual seja possível tomar fôlego de sua vida entediada e de destino aparentemente frustrado.

A relação forjada entre as duas é a de espelhamento. As duas têm inveja de suas projeções, mas como tal, a imagem nem sempre corresponde ao que espera seu contemplador. Nesse sentido, como o leitor já terá observado noutras narrativas de Elena Ferrante, nada deixará de ser casual na composição da trama; mesmo os espaços e os objetos guardam uma variada forma simbólica no desenvolvimento dos universos dramáticos feminino. São em ocasiões como estas que se nota em quão mais significativo e completos são os universos ficcionais geridos pela perspicácia do olhar feminino. Exemplo disso, A filha perdida é a cadeia de significados que se desprendem de um drama aparentemente, ainda menor nas vidas das duas personagens: a ação involuntária de Leda do sequestro da boneca da filha de Nina depois de encontrá-la na praia. Esse gesto corresponderá a recuperação pela memória do passado quando Leda largou a primeira filha aos cuidados do pai para se dedicar à formação profissional e, por sua vez, servirá de intervenção à repetição de outra perda de igual natureza, quando Leda descobre do envolvimento do salva-vidas Gino com Nina, situação da qual se torna confidente.

Assim o gesto casual como o do rapto da boneca que se ampliará num drama de grande proporção – é comum na narrativa de Ferrante: seja uma porta que emperra, seja o desaparecimento repentino e os grandes esforços de uma filha por encontrá-la mesmo que a relação entre as duas seja definida mais pela repulsa – é um recurso que se reveste de extremo significado para a narrativa. No jogo de espelhamentos propostos pelo romance, a escritora multiplica quase ao infinito o lugar da maternidade e suas implicações na liberdade da mulher. O leitor notará que a boneca, enquanto desperta o desmoronamento da vida da menina e por sua vez de Nina, serve a Leda de reparação do tempo perdido quando deixou sua filha aos cuidados do pai e não lhe acompanhou os primeiros desenvolvimentos da vida. Ou seja, este tema é tomado aqui não pelas variantes sociais, mas pelas variantes psicológicas, sobretudo suas ambivalências, cujas constituintes são impostas ora pela natureza, de que a mãe é a responsável principal e primeira pela criação dos filhos, ora pela cultura que prepara as mulheres desde a infância para cumprirem com o designado pela natureza.

Não é gratuita então a cena em que, depois de preparar todo o novo enxoval para a boneca e quando o drama poderá padecer o fim, a descoberta de Leda de que a boneca que traz consigo estava de barriga prenhe de areia, água e restos, resíduos que são criteriosamente extirpados pela professora: “Nani, Nani. A boneca, impassível, continuava a vomitar. Você jogou na pia todo o seu limo, muito bem. Abri os lábios dela, alarguei com um dedo o furo da boca, deixei a água da torneira escorrer dentro dela e depois a sacudi forte para lavar bem a cavidade turva do tronco, do ventre, e enfim retirar a criança que Elena havia posto dentro dela. Brincadeiras. Dizer às meninas tudo, desde a infância: mais tarde, elas é que vão pensar em inventar para si um mundo aceitável”.

A própria Leda, desde o rapto da boneca, recompõe o gesto de brincar de boneca e ao se dá conta disso reflete criteriosamente que “uma mãe não é nada além de uma filha que brinca”.  Neste gesto não é a maternidade aquilo contra o qual lutam as forças da personagem, mas contra os dispositivos machistas que impõem o controle sobre o corpo – e consequentemente sobre a existência – da mulher. “Recomeçarei a partir daqui, pensei, desta coisa. Eu deveria ter percebido logo, desde pequena, esse inchaço avermelhado e mole que agora aperto entre o metal da pinça. Aceitá-lo por aquilo que é. Pobre criatura sem nada de humano. Lá estava a criança que Lenuccia tinha inserido na barriga de sua boneca para brincar de torná-la grávida como a tia Rosaria. Retirei-o delicadamente. Era uma minhoca da praia, não sei qual é o nome científico; uma daquelas que os pescadores amadores do anoitecer arranjam, cavando na areia molhada, como faziam meus primos mais velhos quatro décadas antes, nas praias entre Garigliano e Gaeta. Eu os observava na época com um nojo encantado. Pegavam as minhocas com os dedos e as perfuravam com o anzol como isca para os peixes que, quando fisgados, eram liberados do ferro com um gesto experiente, e, lançados por cima dos ombros, ficavam agonizando sobre a areia seca”.

As situações e os acontecimentos recuperados pela memória nos gestos de reflexão e cuidado para com a boneca não alteram apenas a rotina comum e a vida dos envolvidos com o rapto do brinquedo, mas a própria percepção que Leda faz de si. Há entre a mulher recém-liberta e movida por um bem-estar sem explicações e a mulher depois de limpar e arrumar a boneca uma diferença tão profunda que marcada pela percepção das transformações físicas do tempo sobre o corpo: “Tomei banho e me olhei no espelho enquanto me enxugava. A impressão que eu tinha de mim naqueles meses mudara abruptamente. Não me achei rejuvenescida, mas envelhecida, magra demais, um corpo tão seco a ponto de parecer sem espessura, pelos brancos em meio aos negros em meu sexo. // Saí e fui à farmácia me pesar. A balança imprimiu em uma folha o peso e a altura. Eu estava seis centímetros menor e abaixo do peso. Tentei mais uma vez e a altura diminuiu ainda mais, o peso também. Fui embora desorientada”.

A certa altura do romance a narradora se pergunta como o tempo fez com que ela se envolvesse abruptamente nesse torvelinho de situações e qual o sentido dessa relação perturbadora que desenvolve por Nina e a filha. Com isso, Ferrante descobre – e talvez seja esta uma de suas obsessões literárias – quanto nossas realidades individuais se repetem infinitamente com os outros, embora, cada uma seja já também outra realidade porque as percepções são proporcionalmente diversas. Leda se vê na jovem mãe e nutre por esta uma obsessão que se confunde com o mesmo desejo de Nina, a de testar sua existência na libertação do corpo de todas as amarras impostas; é assim que se explica seu interesse pela relação proibida que Nina desenvolve com o salva-vidas e sobre a qual passa a exercer um controle pela posse da possibilidade de plena realização desse desejo do jovem casal.

Com o mesmo interesse, quer para Nina a mesma condição de seu passado de mãe – que a jovem não abdique da possibilidade de construir sua liberdade. Mas, se as nossas realidades individuais que se repetem com os outros são também outras realidades devido às percepções se mostrarem proporcionalmente diversas, é porque tais realidades se demonstram irrepetíveis. Por mais seguros que estejamos sobre nossa tarefa de recuperá-las não temos o poder de exercer o controle sobre o outro e sequer sobre nós mesmos. Nossa liberdade afinal se constrói até o limite da liberdade do outro; e “o passado é uma roupa que não nos serve mais”. “Às vezes, precisamos fugir para não morrer”, diz a personagem em relação ao passado ou a situação presente que lhes obriga a desfazer os rumos pensados para si. O fato é tudo que se passa fora desses contornos, e o pior que sempre se passa, é drama e danação. “Estou morta, mas bem”, assim se conclui a narrativa de A filha perdida. Porque na vida não podemos nos desviar de nossas responsabilidades frutos das nossas escolhas, tal como descobrirá Leda. 

As ações dessa personagem corroboram ainda com um dos medos sempre recorrentes nas personagens femininas de Elena Ferrante advindos de uma relação controversa com o passado: o medo de tornarem como as suas antepassadas. Ao envolver-se com Nina ela transfere para a jovem o seu drama da juventude. “Todas as esperanças da juventude já me pareciam destruídas, era como se eu tivesse caindo para trás na direção da minha mãe, da minha avó, da cadeia de mulheres mudas ou zangadas da qual eu derivava”, observa a narradora a certa altura. Assim, forja-se uma variada gama de sentidos acerca dos termos que dão título a este romance. Num deles, o que aqui chegamos das relações dessas notas, a perda desta dimensão do passado, recuperado na narrativa pelo tema da perda da filha, situação adversa vivida pela narradora cujo sentido é renovado pela memória desse passado que se projeta através do drama sofrido por Nina e pela filha sem a presença de um objeto de afeto que coloca a mãe e Elena em relação.

Nesse drama sobressai a história de uma identidade que sempre se aterra com as determinantes lógicas da cultura. Leda quer dizer para as mulheres não se sujeitarem ao apagamento de suas dimensões de humanas – e logo passíveis dos mesmos dramas, desejos, frustrações que lhes compõem – em detrimento de uma verdade imposta e mesmo autoimposta de que à mãe só se lhe sobra a tarefa de bordar os limites da história dos filhos ao ponto de abdicar de suas liberdades mais íntimas ou de seus interesses pessoais enquanto indivíduo. Nesse drama é preciso mesmo morrer para ser outra, a capaz de agir por seus próprios meios. Não há vida se não vivemos. 

***

(fragmento da obra)

"Comi algumas uvas na cozinha. Nani estava em cima da mesa. Pareceu-me que estava com ar de limpa e nova, mas também com uma expressão indecifrável, tohu-bohu, sem a luz de uma ordem clara, de verdade. Quando foi que Nina me escolheu lá na praia? Como entrei na sua vida? Aos trancos, sem dúvida, caoticamente. Atribuíra a ela um papel de mãe perfeita, de filha bem-sucedida, mas compliquei sua existência subtraindo a boneca de Elena. Dei a impressão de ser uma mulher livre, independente, refinada, corajosa, sem partes ocultas, mas construí as respostas às perguntas aflitas com exercícios de reticência. Com que direito, por quê? Nossas afinidades eram superficiais, ela corria riscos muito maiores do que os que eu havia corrido vinte anos antes. Quando jovem, eu tinha uma forte percepção de mim mesma, era ambiciosa, separei-me da minha família de origem com a mesma força ousada com que nos libertamos de alguém que nos dá um puxão. Deixei meu marido e minhas filhas em um momento no qual tinha certeza de ter aquele direito, de estar do lado certo, sem contar que Gianni se desesperara, mas não fora atrás de mim, era um homem atento às necessidades dos outros. Nos três anos sem minhas filhas, nunca fiquei sozinha: havia Hardy, um homem de prestígio, ele me amava. Eu me sentia apoiada por um pequeno mundo de amigas e amigos que, mesmo quando discordavam de minhas escolhas, respiravam a mesma cultura que eu, entendiam minhas ambições e meu mal-estar. Quando o peso no fundo do ventre se tornou insustentável e voltei para Bianca e Marta, algumas pessoas haviam se retirado em silêncio da minha vida, algumas portas tinham se fechado para sempre, meu ex-marido decidira que era sua vez de fugir e foi embora para o Canadá, mas ninguém me expulsou nem me julgou indigna. Nina, por sua vez, não tinha nenhuma das defesas que eu ergui antes da ruptura. E, nesse meio-tempo, o mundo não havia melhorado nem um pouco; pelo contrário, tornar-se mais cruel com as mulheres. Ela - em suas próprias palavras -, por muito menos do que eu tinha feito anos antes, corria o risco de ser degolada". 

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