quinta-feira, 22 de junho de 2017

O amor é uma ilusão, mas sua pulsão é a prova de que ainda estamos vivos


“O amor também é uma mentira. A mentira mais velha do mundo”. As duas sentenças aparecem numa conversa entre o professor narrador de boa parte da história contada em Biografia involuntária dos amantes e a chefe de uma editora em Londres, Antonia McKay, e justapostas, como foram propositalmente apresentadas aqui, podem evidenciar sobre este romance de João Tordo. Se não traduzem efetivamente a obra, são significativas para o estágio de permanente frustração que acometem as personagens envolvidas nos dramas centrais da narrativa. Pode-se mesmo dizer que a tentativa do narrador ao se enredar pela história trágica entre o poeta mexicano Miguel Saldaña Paris e Teresa de Sousa é a de – e sobre ela caberá ao leitor descobrir se é ou não uma tentativa igualmente frustrada – reverter sua condição de sujeito à beira de sucumbir às forças indeléveis do tempo. O amor é nesse intervalo um acaso.

Isto é, não deposite o leitor grande arroubo ante o título da obra, esperando encontrar aí um daqueles romances toldados pelo sentimentalismo barato, pelos altos e baixos comuns dos relacionamentos mas com os desfechos que apostam numa redenção da existência pelo amor. O amor referido neste romance é, como o título sugere, o amor amante, aquele que se porta qual avalanche e faz dos envolvidos na sua trama súcubos e mesmo capaz de sugar-lhes todo sopro de vida se este pertencer à linhagem dos antigos românticos. Percebam: nisto, Biografia involuntária dos amantes retoma um lugar-comum às histórias de amor românticas, muito embora, neste caso, os súcubos não apareçam entregues a qualquer custo às forças dessas correntezas, mas estão tomados por uma série diversa de outras condições, produtos de seu tempo, como as que dizem da satisfação e realização ante suas existências. A natureza desses indivíduos são, seja pela condição natural de pouco à vontade em seus mundos, seja pela necessidade interior de ruptura com a mesmidade das formas, seja ainda pelo desejo de, no âmbito das existências vazias e cômodas, sentirem-se vivas, a principal razão pelo desmantelamento das vidas. O amor ocupa, dessa maneira, apenas uma entre as causas primordiais do fim para o qual as personagens da narrativa são arrastadas.

O interesse do narrador pela vida em comum de Saldaña e Teresa se dá casualmente ou como ele verifica, na mesma altura em que conversa com Antonia McKay (atente para o sobrenome dessa personagem), porque a história do poeta mexicano, figura excêntrica na paisagem galega de Pontevedra, em parte se corresponde ao estágio pelo qual ele próprio passava em casa: a recente separação, a relação conflituosa com a única filha adolescente, a vida sem sentido como professor de literatura de língua inglesa, a dedicação ao que parece ser seu único afeto que é um programa de rádio de baixa audiência em Compostela. Tal como a literatura, capaz de ser útil apenas àqueles que em algum momento de suas vidas descobrem-se confrontados com o seu lugar no mundo (porque no diálogo silencioso que constroem com a materialidade do ficcional conseguem encontrar em parte uma maneira de dizer mais de si do que os outros), esse narrador de João Tordo vê-se enredado depois de romper com a curiosidade de saber quem era o homem de penetrantes olhos azuis que ocupava a cena numa praça pública com o desvario de versos soltos e um violão de sons distorcidos.

Aos poucos, o professor tem sua vida modificada pela relação que desenvolve com este forasteiro e pela curiosidade alimentada sempre no interesse em descobrir melhor quais situações o levaram deslocar-se de uma cidade tão grandiosa como é Cidade do México para ir viver uma vida cigana num interior da Galiza. João Tordo, explora, dessa maneira, ainda como o acaso ou este outro com o qual cruzamos e a quem ignoramos, participa (se não nos aproximamos não sabemos) da nossa própria existência ou, por fim, todos compartilhamos de dramas capazes de ser mais graves que os nossos e, justamente por isso, capazes também de nos levar a observar a vida por outro ângulo, alheio ao da frustração.

À medida que descobre sobre a vida de Saldaña Paris, o próprio narrador, primeiro sem observar como ou porque age de maneira precipitada, depois propositalmente e melhor acertada, começa a rever sua condição, a complexidade das suas relações e a maneira de compreensão ante a existência: a principal delas, o desapego da ideia fixa de que ocupa na cadeia humana o lugar do privilegiado porque capaz de desfrutar do mais elevado da criação humana. Isso é demonstrado claramente quando confessa de maneira crítica e reprovadora como os homens estão mais afeitos à aparência num episódio passado entre ele e um sujeito boa pinta num metrô. Ao vê-lo bem-posto, mergulhado no som dos fones de ouvido, o narrador estima que ali reside um super-homem ou homem de cultura elevada ao julgar que sua dedicação com o escuta deve se referir a um ouvinte de música clássica quando na verdade ouvia um desses programas baratos com desafios aos espectadores. Uma série de outras situações, como estas, alheias ao drama Saldaña-Teresa, confrontam-no com sua realidade. Aos poucos, ele reconhece nas pessoas que critica algo que as diferenciam no mundo: cada uma delas têm autonomia e atitude frente à realidade e não se demonstram acanhadas ou presas em elucubrações fictícias sobre si fabricadas pelo ponto de vista imaginado do outro. Estão, de alguma maneira, tomadas por um senso de liberdade capazes de, por seus próprios meios, encontrarem a possibilidade primordial da existência.

Nesse sentido, vale recobrar uma referência literária recorrente em Biografia involuntária dos amantes. O programa apresentado por este narrador, para o qual convida e onde escuta pela primeira vez parte da história do misterioso Miguel Saldaña, chama-se, qual o título de uma peça de Samuel Beckett, Dias felizes. Beckett é o autor preferido de Teresa que conhece uma de suas obras quando adolescente com um seu primeiro amor, o tímido Jaime, quem leva bastante jeito para a literatura e é por isso um assaz leitor. Beckett está à entrada do romance numa epígrafe recolhida de qual obra? Acertou, se pensou Dias felizes. Seguindo o padrão insólito pelo qual o dramaturgo irlandês, em Dias felizes encontramos Winnie, uma figura enterrada no solo, de onde comanda o seu universo de ilusões, entre elas, o amor nunca conseguido. Da mesma maneira porta-se, terão percebido, este professor de literatura narrador da Biografia e as demais personagens. Ele, entretanto, mesmo submetido aos seus medos, entre eles o que o leva à constatação do amor enquanto farsa, tem a atitude de, pela imersão reconstrutora, quando decide abandonar a mera admiração que nutre por Saldaña para investigar o passado do poeta, encontrar a imagem reveladora de si e logo da realidade. E onde então para sua busca? Tal como Winnie, que da condição de aterrada até cintura no primeiro ato passa a de aterrada até o pescoço no segundo, o que se revela para o espectador como uma metáfora da força indelével do tempo sobre a vida, o narrador percebe que, no fim de tudo, cedo ou tarde, ela, a existência, traga todos da mesma maneira – é essa condição primordial da vida a qual ele ainda não havia dado conta até envolver-se integralmente, ainda que involuntariamente na biografia dos amantes Saldaña e Teresa. Notável ainda que esse envolvimento se produza e se fortaleça a partir de uma situação-limite pela qual os dois, o narrador e Saldaña, vêm suas existências confrontadas: o atropelamento de um javali.



A investigação do narrador da Biografia involuntária dos amantes é – para usar novamente da compreensão proposta pelo próprio romance, quando o narrador recebe de Saldaña um manuscrito supostamente redigido por Teresa, ela assim inicia a narrativa, “Esta história que vou contar é sobre o meu tio e é também sobre mim, embora os narradores muitas vezes se escondam por trás de outras pessoas, como Alice se escondeu por trás de um espelho” – é também a investigação de João Tordo. Uma investigação sobre a impossibilidade do amor (não a de amar, porque afinal este romance está rico em provas dessa possibilidade); ou melhor, sobre a compreensão de que o amor só se realiza na ausência – mesmo os encontros nos quais forjam-se a ilusão de sua existência ou a ilusão sobre a revelação de sua existência são interdições.

Enquanto plenitude o amor está condenado, porque cedo ou tarde, os amantes serão tomados pela sensaboria da mesmice; porque cedo ou tarde os amantes estarão confrontados com os amores do passado e estes, porque estão no passado, serão sempre melhores, mais doces, mesmo que futuramente possam ser realizados e constatados como irrepetíveis. Ou mesmo realizados da pior e maneira mais dramática possível. Estamos no pantanoso território do jogo entre o vivido e o idealizado e suas incompatibilidades. Assim, Biografia involuntária dos amantes é um romance sobre desencontros e solidões. Noutra margem, é ainda uma narrativa sobre a compreensão de que, enquanto impossibilidade, o amor confunde-se com a tarefa de ser força motriz da própria existência. Em sua pulsão, ele é a prova de que ainda estamos vivos. Isso porque nenhuma existência se faz da pura realidade, nem a pura realidade se sustenta sem a mentira. Apenas uns lidam melhor com isso enquanto outros sucumbem. A vida ensina, mas uma amostra está neste romance.

***

(fragmento da obra)

"Antonia já dormia quando tirei o caderno do bolso do casaco. Tornei a ler a frase que Julia Montel me dissera e que eu escrevinhara numa página no quarto do hospital. Fizera dela o meu lema, a energia metafísica que me empurrava. Perguntei-me se era possível continuar a amar; se era possível, nesta minha existência mutilada, continuar a perseguir essa narrativa em que a mentira (ou o desamor) era o denominador comum que unia todas as personagens. Não se podia viver sem amor, isso era certo. Questionava-me, porém, se era possível viver com tanto ódio. E questionava-me qual seria a diferença entre os dois. Um dia acordamos e julgamos que a pessoa que está á nossa frente é o fim, ou final, ou a coisa certa, e que esse fim ou final ou coisa certa nos impedirá a morte ou, pelo menos, nos fará esquecer que o decorrer de cada dia é um suicídio sem vontade. No outro, acordamos e julgamos que a pessoa que está à nossa frente é o fim, o final ou a coisa errada e queremos aniquilá-la, removê-la das nossas vidas como um cirurgião remove um quisto e dele se descarta atirando-o para uma bandeja de metal, onde jaz esquecido até que alguém se lembre de o eliminar de vez, porque os rejeitados e os amantes não se suicidam, antes são assassinados, e alguém tem de lhes fazer o óbito. Ergui-me do sofá, procurando não acordar Antonia, que resmungou alguma coisa imperceptível no seu sono. Dei-lhe um beijo no rosto, muito ao de leve, e senti-lhe o sabor salgado da pele. Ao fechar a porta, escutando o meticuloso mecanismo do trinco, reparei que me esquecera da sombrinha em sua casa. Já não podia voltar atrás. Lá fora, nas ruas esquecidas de Londres, a chuva continuava a cair".



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