sexta-feira, 31 de julho de 2015

Objecto quase ou um encontro profundo com as primeiras formas narrativas de José Saramago

José Saramago na década de 1970.

Trata-se da única antologia de contos do escritor português, o que não significa dizer que a obra do gênero esteja resumida aos seis textos apresentados na edição. É de conhecimento público títulos como O conto da ilha desconhecida (publicado em 1998, com desenhos de Pedro Cabrita, pela Assírio & Alvim e produto de uma encomenda feita pelos curadores da EXPO'98), A maior flor do mundo (o conto escrito a partir de uma crônica, publicado em 2001, e que ganhou as telas do cinema através de um curta dirigido pelo espanhol Juan Pablo Echeverry) e O silêncio da água (de 2011, produto de um fragmento de As pequenas memórias). Os três textos têm edição no Brasil pela Companhia das Letras.

Mas, Saramago é autor também de outros textos do gênero, como O ouvido (nunca publicado aqui, mas integrante de uma publicação coletiva em que tanto o escritor português como os outros autores, Ana Hatherly, Augusto Abelaira, Isabel da Nóbrega, Maria Velho da Costa e Nuno Bragança foram designados a escrever sobre um dos cinco sentidos inspirados a partir da tapeçaria La Dame à La Licorne numa edição com tiragem limitada e publicada pela Livraria Bertrand); e há os dispersos, muitos, como o conto Natal, de data indefinida que descobri durante o ato de escrita de minha monografia de graduação compilado na edição da Revista Colóquio / Letras editada em homenagem ao escritor ou  A morte de Julião, publicado na Revista Ver e crer de 1948.

Além desses, Fernando Gómez Aguilera destaca uma extensa produção literária do gênero entre os naos 1940 e 1940 e publicada em revistas e jornais como Seara nova, Diário popular, Magazine da mulher Vértice: "Os benditos senhores", "Cheia", "Sonegação de espólio", "História de crimes", "A dívida ainda não foi paga", "Ladrão de milho", "João Violão", "O Sr. Cristo", "Parábola", "Encontro", "O mentiroso", "Longa é a estrada", "A eminente dignidade", "Doença súbita e mortal", "Teratologia", "Bandeira negra", "Coleções", "O heroísmo quotidiano" e "A história do senhor Manoel Pedro". Isto é, o que conhecemos é apenas a ponta de um extenso iceberg e a comprovação de que é falsa a ideia de que Saramago teria ficado parado entre a publicação do romance fracassado Terra do pecado e Manual de pintura e caligrafia.



Objecto quase foi publicado pela primeira vez em 1978 pela Moraes Editores. E apesar de chamá-lo de antologia, é óbvio que José Saramago não juntou textos esparsos e publicou-os sob esse título. Mas, elaborou seriamente um projeto para sua composição, justificada do título à epígrafe que abre a obra, uma citação de Marx e Engels extraída de A sagrada família ("Se o homem é formado pelas circunstâncias, é necessário formar as circunstâncias humanamente"). Diria que estes textos têm a marca crítica de quem compreende - à frente de seu tempo - o lugar de alienação a que estamos reduzidos, isto é, nossa redução à forma do objeto ou de coisa. Além do título e da epígrafe, o conto "Coisas" revela abertamente essa proposta ao apresentar uma substituição do homem pela coisa e da coisa pelo homem.

Além de ser um alerta sobre este estágio de subvaloração do sujeito, Objecto quase se inscreve como grito contra a inércia. E note o espírito aguçado de Saramago: falar sobre uma letargia dos indivíduos num tempo em que ainda todos pareciam estavam afeitos a ver o mundo pelo exercício de sua atuação nele, muito embora, o contexto de aparição dessa obra seja justamente o Portugal subjugado pelo longo processo ditatorial, o que reforça o ponto de urdidura do pensamento político do escritor português contra um sistema opressor.

Todos os recantos da obra demonstram isso, mas é notório o trabalho de subversão sobre a ordem dominante, na escrita do primeiro conto do livro: "Cadeira", em que o leitor se depara com a figura de um ditador (claramente o fatídico Salazar) num processo de queda da cadeira onde está sentado. Já aqui, a visão de Saramago é pelos pequenos, àqueles que estão à margem da história: note o leitor que sua reflexão - aliás, o melhor desse livro - está pautada pelo ponto de vista dos carunchos que corroem a madeira do assento.

Esse processo de ruptura silenciosa é um traço de esperança; o que nos faz sermos objetos, mas não de um todo, objetos quase. E tal como "Cadeira" e "Coisas", os demais contos estão todos designados por um único título: "Embargo, "Refluxo", "Coisas", "Centauro", "Desforra". Desses, o penúltimo é o que parece destoar dos demais, pela dimensão poético-romântica que encerra e, claro, pelo traço do fantástico que é a presença de uma fusão homem-mito, linha que se consolidará nos expressivos romances como Memorial do convento ou A jangada de pedra, para citar dois deles. Também "Desforra" e sobre este sabemos que, de fato, teve uma publicação anterior à obra com o título de "Calor" num dos números da Revista Colóquio / Letras.

Outro elemento que marca esses contos, já pulsante no Saramago pré-romancista, está a busca por uma estética e uma linguagem próprias; marcadamente cada conto de Objecto quase tem sua forma linguística própria. Ao ler títulos como "Cadeira", por exemplo, haveremos de perceber um movimento de circularidade em torno da própria linguagem; o conto, além de trazer o fato histórico para sua composição, é também o em que um narrador serpenteia em torno da própria linguagem, no sentido de encontrar um trajeto, uma via, pela qual possa revelar uma maneira de comunicação genuinamente sua; sabemos que alcançará isso quando escreve Levantado do chão.

Apesar de, mais tarde, o escritor dizer que única coisa aproveitável do livro era a epígrafe (está num dos volumes dos Cadernos de Lanzarote), Objecto quase é uma obra que assinala um encontro profundo com as primeiras formas narrativas de José Saramago. E é um título importantíssimo na compreensão dos temas com os quais irá compor sua prosa romanesca.

***

Para o rol:

1. Estas notas compõem uma versão muito ampliada para outras que registrei em 2008 no blog Letras in.verso e re.verso.

2. Podem ler o conto "Cadeira" a partir de uma postagem feita também em 2008 no blog Letras in.verso e re.verso.

3. O jornal The Guardian pediu a um grupo de escritores que escolhessem o seu conto preferido e o lessem para um podcast. A escritora sul-africana Nadine Gordimer, escolheu "O centauro", de José Saramago e explicou porquê.


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